quinta-feira, 29 de maio de 2008

Sobre (e contra) a Reforma Ortográfica

Já não basta ficarem mexendo toda hora no valor e no nome do dinheiro? Nos juros, no crédito, nas alíquotas de importação, no câmbio, na Ufir e nas regras do imposto de renda? Já não basta mudarem as formas da Lua, as marés, a direção dos ventos e o mapa da Europa? E as regras das campanhas eleitorais, o ministério, o comprimento das saias, a largura das gravatas? Não basta os deputados mudarem de partido, homens virarem mulher, mulheres virarem homem e os economistas virarem lobisomem, quando saem do Banco Central e ingressam na banca privada? Já não basta os prefeitos, como imperadores romanos, tentarem mudar o nome de avenidas cruciais, como a Vieira Souto, no Rio de Janeiro, ou se lançarem à aventura maluca de destruir largos pedaços da cidade para rasgar avenidas, como em São Paulo? Já não basta mudarem toda hora as teorias sobre o que engorda e o que emagrece? Não basta mudarem a capital federal, o número de estados, o número de municípios e até o nome do país, que já foi Estados Unidos do Brasil e depois virou República Federativa do Brasil?
Não, não basta. Lá vêm eles de novo, querendo mudar as regras de escrever o idioma. "Minha pátria é a língua portuguesa", escreveu Fernando Pessoa pela pena de um de seus heterônimos, Bernardo Soares, autor do Livro do Desassossego. Desassossegados estamos. Querem mexer na pátria. Quando mexem no modo de escrever o idioma, põem a mão num espaço íntimo e sagrado como a terra de onde se vem, o clima a que se acostumou, o pão que se come.
Aprovou-se recentemente no Senado mais uma reforma ortográfica da Língua Portuguesa. É a terceira nos últimos 52 anos, depois das de 1943 e 1971- muita reforma, para pouco tempo. Uma pessoa hoje com 60 anos aprendeu a escrever "idéa", depois, em 1943, mudou para "idéia", ficou feliz em 1971 porque "idéia" passou incólume, mas agora vai escrever "ideia", sem acento.
Reformas ortográficas são quase sempre um exercício vão, por dois motivos. Primeiro, porque tentam banhar de lógica o que, por natureza, possui extensas zonas infensas à lógica, como é o caso de um idioma. Escreve-se "Egito", e não "Egipto", mas "egípcio", e não "egício", e daí? Escreve-se "muito", mas em geral se fala "muinto". Segundo, porque, quando as reformas se regem pela obsessão de fazer coincidir a fala com a escrita, como é o caso das reformas da Língua Portuguesa, estão correndo atrás do inalcançável. A pronúncia muda no tempo e no espaço. A flor que já foi "azálea" está virando "azaléa" e não se pode dizer que esteja errado o que todo o povo vem consagrando. "Poder" se pronuncia "poder" no Sul do Brasil e "puder" no Brasil do Nordeste. Querer que a grafia coincida sempre com a pronúncia é como correr atrás do arco-íris, e a comparação não é fortuita, pois uma língua é uma coisa bela, mutável e misteriosa como um arco-íris.
Acresce que a atual reforma, além de vã, é frívola. Sua justificativa é unificar as grafias do Português do Brasil e de Portugal. Ora, no meio do caminho percebeu-se que seria uma violência fazer um português escrever "fato" quando fala "facto", ou "recepção" quando fala "receção", da mesma forma como seria cruel fazer um brasileiro escrever "facto" ou "receção" (que ele só conhece, e bem, com dois ss, no sentido de inferno astral da economia). Deixou-se, então, que cada um continuasse a escrever como está acostumado, no que se fez bem, mas, se a reforma era para unificar e não unifica, para que então fazê-la? Unifica um pouco, responderão os defensores da reforma. Mas, se é só um pouco, o que adianta? Aliás, para que unificar? O último argumento dos propugnadores da reforma é que, afinal, ela é pequena - mexe com a grafia de 600, entre as cerca de 110.000 palavras da Língua Portuguesa, ou apenas 0,54% do total. Se é tão pequena, volta a pergunta: para que fazê-la?
Fala-se que a reforma simplifica o idioma e, assim, torna mais fácil seu ensino. Engano. A representação escrita da língua é um bem que percorre as gerações, passando de uma à outra, e será tão mais bem transmitida quanto mais estável for, ou, pelo menos, quanto menos interferências arbitrárias sofrer. Não se mexa assim na língua. O preço disso é banalizá-la como já fizeram com a moeda, no Brasil.

(Roberto Pompeu de Toledo - Veja, 24.05.95.Texto adaptado pela equipe de Língua Portuguesa da COPEVE/UFMG.)

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